A lei 14.034/2020[1], derivada da Medida Provisória nº 925/2020[2] editada em março do corrente ano, dispõe acerca de medidas emergenciais para a aviação civil em razão da pandemia do novo Coronavirus, com o objetivo principal de manter o equilíbrio e equidade entre as partes envolvidas no contrato de transporte aéreo e, precipuamente, dar assistência ao setor de aviação civil, atenuando os efeitos da crise.
É cediço que desde o início da pandemia, a atividade exercida pelas companhias aéreas foi uma das mais afetadas, trazendo reflexos diretos em seus faturamentos, balanços patrimoniais e fluxos de caixa, severamente comprometidos com despesas imediatas para conservação de postos de trabalho e manutenção de atividades mínimas e de suas aeronaves.
Imperioso ressaltar também, a redução drástica de toda malha aérea que atua hoje de forma emergencial – cerca de 92% (noventa e dois por cento) menor do que em condições normais, passando de 14.781 (quatorze mil setecentos e oitenta e um) para ínfimos 1.241 (mil duzentos e quarenta e um) voos semanais[3].
Nesse ínterim, dentre as alterações significativas para o transportador, destaca-se a permissão do uso dos recursos do FNAC – Fundo Nacional de Aviação Civil como garantia de empréstimo limitada a R$ 3 (três) bilhões, para pagamento em até 31/12/2031 com carência de 30 meses e, ainda, dispõe sobre o perdão das dívidas das Empresas em relação ao adicional de Tarifa Aeroportuária, acumulados entre 01/12/2013 a 31/12/2016.
Noutro giro, agora sob a ótica do consumidor, a nova lei trouxe aspectos relevantes em relação aos cancelamentos, remarcações e reembolso de passagens, para voos realizados no período compreendido entre 19/03/2020 e 31/12/2020. Uma das principais alterações está no termo inicial da contagem para o reembolso dos valores. Com a redação dada, o transportador tem o prazo de 12 meses contados da data do voo cancelado para realizar a devolução, sem prejuízo à assistência material, quando cabível. in verbis:
Art. 3º O reembolso do valor da passagem aérea devido ao consumidor por cancelamento de voo no período compreendido entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2020 será realizado pelo transportador no prazo de 12 (doze) meses, contado da data do voo cancelado, observadas a atualização monetária calculada com base no INPC e, quando cabível, a prestação de assistência material, nos termos da regulamentação vigente.
Ainda, alternativamente, as Companhias poderão oferecer ao consumidor a convolação do valor em créditos de montante igual ou superior à passagem aérea, podendo ser utilizada pelo próprio passageiro ou terceiros, no prazo de 18 (dezoito) meses a contar do recebimento do crédito.
Por outro lado, na situação em que houver desistência e pedido de cancelamento por parte do passageiro, este poderá optar por: i) receber o reembolso da quantia na forma e no prazo previstos no art. 3º, observadas a incidência de taxas e penalidades contratualmente previstas; ou ii) o crédito integral a ser disponibilizado pela Empresa no período de 7 (sete) dias da solicitação, com o prazo de 18 (dezoito) meses para a utilização.
Outro ponto que merece destaque é a alteração no Código Aeronáutico (Lei 7565/86) na visível tentativa de “desjudicialização” na relação jurídica existente, com a consequente diminuição de ajuizamento de demandas infundadas.
Segundo a Lei 14.034/2020, a indenização por dano extrapatrimonial em decorrência e falha na execução do contrato de transporte, fica condicionada à efetiva demonstração do prejuízo. Ipsis verbis:
Art. 251-A. A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.”
Reforça, pois, o entendimento que já vinha sendo utilizado após a decisão proferida no Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.584.465[4], liderado pela Ministra Nancy Andrighi, que entendeu que a caracterização do dano moral presumido não pode ser elastecida a ponto de afastar a necessidade de sua efetiva demonstração em qualquer situação. In verbis:
DIREITO DO CONSUMIDOR E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. ATRASO EM VOO INTERNACIONAL. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. EXTRAVIO DE BAGAGEM. ALTERAÇÃO DO VALOR FIXADO A TÍTULO DE DANOS MORAIS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. Ação de reparação de danos materiais e compensação de danos morais, tendo em vista falha na prestação de serviços aéreos, decorrentes de atraso de voo internacional e extravio de bagagem. 2. Ação ajuizada em 03/06/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73. 3. O propósito recursal é definir i) se a companhia aérea recorrida deve ser condenada a compensar os danos morais supostamente sofridos pelo recorrente, em razão de atraso de voo internacional; e ii) se o valor arbitrado a título de danos morais em virtude do extravio de bagagem deve ser majorado. 4. A ausência de decisão acerca dos argumentos invocados pelo recorrente em suas razões recursais impede o conhecimento do recurso especial. 5. Na específica hipótese de atraso de voo operado por companhia aérea, não se vislumbra que o dano moral possa ser presumido em decorrência da mera demora e eventual desconforto, aflição e transtornos suportados pelo passageiro. Isso porque vários outros fatores devem ser considerados a fim de que se possa investigar acerca da real ocorrência do dano moral, exigindo-se, por conseguinte, a prova, por parte do passageiro, da lesão extrapatrimonial sofrida. 6. Sem dúvida, as circunstâncias que envolvem o caso concreto servirão de baliza para a possível comprovação e a consequente constatação da ocorrência do dano moral. A exemplo, pode-se citar particularidades a serem observadas: i) a averiguação acerca do tempo que se levou para a solução do problema, isto é, a real duração do atraso; ii) se a companhia ofertou alternativas para melhor atender aos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da companhia aérea a fim de amenizar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros. 7. Na hipótese, não foi invocado nenhum fato extraordinário que tenha ofendido o âmago da personalidade do recorrente. Via de consequência, não há como se falar em abalo moral indenizável. 8. Quanto ao pleito de majoração do valor a título de danos morais, arbitrado em virtude do extravio de bagagem, tem-se que a alteração do valor fixado a título de compensação dos danos morais somente é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada, o que não ocorreu na espécie, tendo em vista que foi fixado em R$ 5.000,00 (cinco mil reais). 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido. (STJ, Recurso Especial n° 1.584.465 – MG., Rel. Min, Nancy Andrighi) g.n.
Acrescentou-se ainda à redação dada para o Código Aeronáutico que, se caso o transportador comprovar que, por motivos de caso fortuito ou força maior, foi impossível adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano, ficará desobrigado de repará-lo.
Nesse norte, entende-se como caso fortuito e força maior, nos termos do art. 256, § 3º do Código Aeronáutico, restrições ao pouso ou à decolagem decorrentes de condições meteorológicas adversas e indisponibilidade da infraestrutura aeroportuária.
O que vemos então é uma sensibilidade, tanto do Judiciário quanto do Legislativo, em adotar medidas que impactam diretamente na diminuição de prejuízo das Companhias e auxiliam na recuperação do setor.
Em recente decisão proferida pela Turma Recursal de Belo Horizonte, nos autos de nº 9006348.05.2019.813.0024, determinou-se a redução do valor arbitrado a título de dano moral reconhecendo que, devido ao desdobramento do cenário do transporte aéreo nacional e internacional decorrente da pandemia do novo coronavírus, a atividade exercida pela Ré foi gravemente impactada. Vejamos o seguinte excerto do r. acórdão[5], in verbis:
(…) O arbitramento do quantum indenizatório deve contemplar a participação dos envolvidos no episódio, suas consequências, a posição socioeconômica dos envolvidos, que traga lenitivo suficiente para a vítima, com caráter profilático, sem se constituir em fonte de enriquecimento sem
causa, considerando, ainda, a forte retração econômica decorrente do isolamento social imposto para o combate à pandemia do coronavírus. Guiado por essas balizas, entendo de reduzir o valor da indenização de R$ 7.000,00 (sete mil reais) para R$ 2.000,00 (dois mil reais) para o recorrido. (…)
Esse também é o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo[6]:
(…) No mais, observo que as companhias aéreas passam por crise sem precedentes no setor, em razão da pandemia da COVID-19. A condenação geral e irrestrita em danos morais aos passageiros, neste momento, simplesmente conduzirá a quebra das companhias aéreas. Nesse ponto, observo que o argumento jurídico consequencialista, apesar de não ser o melhor, é previsto atualmente na Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro (artigo 20) (…).
Nesta senda, diante do exposto, se observa nitidamente a intenção do Estado em minimizar os efeitos da crise causada pelo cenário pandêmico, aliado ao interesse público em manter a continuidade no setor, já que as Empresas assumem uma feição pública de relevante importância econômica, para além da prestação do serviço essencial de transporte aéreo e, acima de tudo, sopesar a relação entre o transportador e os consumidores.
Bruno A.S. Penello Cardoso
(31) 3261-8083
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[1] BRASIL. LEI Nº 14.034, DE 05 DE AGOSTO DE 2020. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14034.htm>. Acesso em: 14/09/2020.
[2] BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA, DE 18 DE MARÇO DE 2020. Brasília, DF. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv925.htm>. Acesso em: 14/09/2020.
[3] https://www.anac.gov.br/noticias/2020/malha-aerea-essencial-comeca-no-sabado-28
[4] STJ – REsp: 1584465, Relatora: Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 13/11/2018, Terceira Turma do STJ, Data de Publicação: 23/11/2018.
[5] TJMG – RI: 9006348.05.2019.813.0024, Relator: Francisco Ricardo Sales Costa, Data de Julgamento: 15/04/2020, Turma Recursal de Jurisdição Exclusiva de Belo Horizonte, Betim e Contagem, Data de Publicação: 15/04/2020.
[6] TJSP – Autos nº: 1004341-41.2020.8.13.0361, Juiz: Thiago Massao Cortizo Teraoka, Data de Julgamento: 20/05/2020, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal/SP, Data de Publicação: 20/05/2020.