Judicialização da saúde suplementar: um alerta sobre riscos à sustentabilidade | por Loyanna Menezes e Victória Rocco

O direito à saúde é assegurado pela Constituição Federal como um direito social fundamental, cuja concretização envolve a atuação coordenada do poder público e da iniciativa privada. Nesse contexto, os planos de saúde atuam como importante instrumento de apoio à sustentabilidade do sistema de saúde no Brasil.

Além de atuarem como agentes de prestação direta de serviços, as operadoras são também indutoras de inovação, promovendo investimentos em tecnologia, medicina preventiva, telessaúde e programas de atenção primária, com impactos positivos sobre indicadores de saúde e qualidade de vida dos usuários. Essa atuação complementa os esforços do setor público, contribuindo para o uso racional dos serviços de saúde.

Nos últimos anos, contudo, observa-se um crescimento expressivo da judicialização no setor, fenômeno que, embora reflita a legítima busca dos cidadãos por seus direitos, tem gerado desequilíbrios relevantes, especialmente no âmbito da saúde suplementar.

A atuação do Poder Judiciário, ao impor obrigações não previstas nos contratos e ao afastar normativas técnicas de regulação, contribui para a insegurança jurídica e compromete o equilíbrio econômico-financeiro das operadoras, afetando, por consequência, a coletividade de beneficiários.

Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da base DataJud, demonstram que apenas no mês de janeiro de 2025 foram ajuizadas 39.565 novas ações relacionadas à saúde — um aumento de mais de 90% em relação ao mesmo mês do ano de 2020, que registrou 20.601 demandas.

No acumulado anual, o cenário é ainda mais expressivo: de 343.622 ações em 2020, o número quase dobrou em 2024, alcançando 661.091 processos, o que confirma a consolidação de uma tendência de alta que impacta diretamente a previsibilidade e a capacidade de planejamento de todo o sistema.

No âmbito da saúde suplementar, os efeitos dessa judicialização têm se mostrado especialmente relevantes. Ao transferir ao Judiciário a decisão sobre questões técnicas — como a incorporação de novas tecnologias, a cobertura de procedimentos e a regulação contratual — abre-se espaço para decisões isoladas que, muitas vezes, desconsideram os critérios técnicos estabelecidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e os limites atuariais que estruturam o modelo de operação das operadoras.

Esse cenário exige atenção redobrada, uma vez que a multiplicação de decisões que impõem obrigações não previstas contratualmente, ou que extrapolam o escopo do rol de procedimentos obrigatórios, pode gerar efeitos sistêmicos que comprometem não apenas o equilíbrio econômico-financeiro das operadoras, mas também o acesso da coletividade à saúde suplementar, especialmente diante da necessidade de reajustes para absorção de custos extraordinários.

Além disso, a judicialização em massa fragiliza o papel institucional da ANS, cuja função é justamente garantir a estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica nas relações entre operadoras, prestadores e beneficiários. A valorização da regulação técnica, baseada em evidência científica e princípios de razoabilidade, é essencial para preservar o equilíbrio do sistema e evitar distorções que afetem toda a coletividade.

Nos processos que envolvem a negativa de cobertura pelos planos de saúde, ou seja, situações em que determinados procedimentos, exames ou tratamentos não constam do rol de procedimentos da ANS ou apresentam exclusões contratuais previstas de forma clara e legítima, por exemplo, em muitos casos, decisões judiciais afastam essas exclusões com base em fundamentos genéricos, desconsiderando o equilíbrio atuarial do contrato e os critérios técnicos definidos pela regulação.

Por sua vez, a judicialização de pedidos para cobertura de medicamentos fora do escopo regulatório, ou ainda em fase experimental, impõe às operadoras obrigações que extrapolam o modelo de cobertura contratual e afetam a racionalidade econômico-financeira do setor.

Em termos práticos, a imposição de coberturas não previstas, muitas vezes desconectadas dos critérios técnicos definidos pela ANS, compromete a sustentabilidade dos contratos e pressiona os custos assistenciais, refletindo-se no reajuste das mensalidades e na necessidade de adaptação dos produtos ofertados.

Obviamente, essa dinâmica interfere diretamente na capacidade de acesso da população à saúde suplementar. O resultado é um efeito reverso: ao onerar excessivamente o setor, a judicialização tende a reduzir a base de beneficiários, ampliando a pressão sobre o SUS. Indivíduos que antes estavam vinculados à saúde privada passam a depender exclusivamente da rede pública, gerando sobrecarga nos atendimentos, aumento das filas e desafios adicionais para a gestão orçamentária do sistema estatal.

Além disso, a imprevisibilidade decorrente de decisões judiciais isoladas fragiliza o ambiente regulatório e compromete o planejamento de longo prazo das operadoras. Sem critérios objetivos e uniformes para a atuação do Judiciário em matéria de saúde, os riscos atuariais se ampliam, dificultando investimentos e inovação em modelos assistenciais resolutivos e preventivos.

Diante de todo o exposto, em razão das preocupações que pairam sobre o tema, é fundamental, portanto, que o debate sobre a judicialização da saúde seja conduzido à luz da responsabilidade coletiva e da necessidade de preservação do equilíbrio técnico, contratual e financeiro da saúde suplementar.

O fortalecimento da previsibilidade jurídica e o respeito à regulação técnica e contratual são pressupostos indispensáveis para garantir o acesso contínuo e de qualidade à saúde privada, com efeitos positivos também sobre a sustentabilidade do sistema público.

Mais do que nunca, é necessário promover o diálogo entre os atores institucionais e consolidar práticas que conciliem o direito individual à saúde com a sustentabilidade coletiva da assistência. Sem dúvidas, o fortalecimento da saúde suplementar, aliado a um ambiente regulatório estável e respeitado, é um passo fundamental para o aprimoramento do sistema de saúde brasileiro como um todo.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Dados processuais de saúde podem ser monitorados em painel do CNJ. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/dados-processuais-de-saude-podem-ser-monitorados-em-painel-do-cnj/ . Acesso em: 1 abr. 2025.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números. Painel de Saúde. Disponível em: https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-saude/ . Acesso em: 5 abr. 2025.

SANTOS, R. C. et al. Judicialização da saúde: impasses e desafios. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 24, 2020. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/icse/v24/1807-5762-icse-24-e190345.pdf  Acesso em: 5 abr. 2025.

VILLELA, E. F. Judicialização da saúde no Brasil: um estudo crítico. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 77-100, 2010. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/physis/2010.v20n1/77-100/pt . Acesso em: 1 abr. 2025.

CARVALHO, M. P. et al. Ações judiciais e políticas públicas de saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 126, p. 141-156, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/vSvHRqJW8XKDSvgqGYGCtdy/ . Acesso em: 1 abr. 2025.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização e Sociedade: relatório. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/06/Relatorio_Judicializacao-e-Sociedade.pdf . Acesso em: 5 abr. 2025.

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