Tecnologia é desvirtuada para atuação temerária e afastada das diretrizes éticas e legais em demandas ao Poder Judiciário
Preliminarmente, cumpre traçar alguns pontos sobre um mercado obscuro e, infelizmente, em ampla expansão. Trata-se da advocacia predatória, um modo de operação totalmente afastado dos ditames legais e éticos, mas, ainda assim, travestido em suposto “aconselhamento e apoio ao consumidor”, e apesar de todas as forças institucionais para travar o movimento, tem se tornado um produto mercantil de alta escala.
Por advocacia predatória, subentende-se o exercício irregular da aludida profissão, mediante distribuição numerosa de demandas judiciais que, em sua essência, não detém fundamentação adequada, verídica, tampouco subsídio Legislativo que a subsidie.
Ela é configurada, portanto, por ações apresentadas ao Poder Judiciário em massa, mediante, como é o caso, inclusão de petições padronizadas, quase que idênticas. Obviamente, têm a finalidade de, valendo-se da máquina judiciária, obter de objetivos ilegais, ilícitos e notoriamente indevidos.
Em uma notícia recente publicada pelo site Consultor Jurídico, noticiou-se um largo crescimento desta prática. Conforme veiculado, no ano de 2022 e até maio de 2023, o Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas (Numopede), da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, recebeu 735 comunicações de magistrados relacionadas a litigância predatória verificadas em processos que correm no estado.
Mas não apenas isto. O referido órgão, da Corte de Justiça do Estado de São Paulo, constatou que a litigância predatória geraria uma movimentação que varia entre 300 mil a 600 mil processos. Por consequência lógica, enseja custo adicional aos cofres públicos do estado que ultrapassa R$ 1 bilhão. O prejuízo e os impactos da referida prática, portanto, são astronômicos.
No aludido artigo, são mencionados, inclusive, inúmeros casos de advogados que se valeram de litigância predatória e, em razão disto, foram reiteradamente condenados ao pagamento de penalidades processuais, em razão da prática de atos eivados de má-fé, fraudulentos e que atentam à dignidade judiciária.
Para tanto, essencial destacar voto emblemático proferido nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3995/DF, conduzido pelo ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro de 2019. Na ocasião, reconhecendo-se a insubsistência da pretensão colocada à análise da Corte, ponderou-se que a prestação jurisdicional deve ser exercida de maneira equilibrada, concedendo-se, todavia, a devida atenção ao exercício abusivo da jurisdição.
O ministro relator, em suas considerações, ponderou que (i) os baixos custos, ou, riscos decorrentes do ajuizamento de demandas fúteis, ou, temerárias representa verdadeira incentivo aos praticantes da advocacia predatória; e por outro lado (ii) caso haja a alteração da perspectiva, isto é, majoração dos custos para acesso ao Judiciário, certamente haverá, por via reflexa, cabal desincentivo ao acúmulo e ajuizamento, em massa, de procedimentos impertinentes e improcedentes.
Nesse cenário, o setor aéreo tem sido um grande espaço de atuação das startups e lawtechs, também conhecidos como “aplicativos ou sites abutres”, os quais compram os direitos de indenização de passageiros que eventualmente tiveram algum transtorno na relação com uma companhia aérea.
A justificativa para manutenção desses sítios eletrônicos de captação mercantil de clientes (o que é vedado pelo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), como dito acima, transveste-se em uma ferramenta de “orientação e apoio ao consumidor”, o que, pelo bem da verdade, não é o maior objetivo.
Claramente, sob o disfarce de oferecer benefícios imediatos aos passageiros, observa-se uma abordagem agressiva e arriscada na busca por clientes, abusando da vulnerabilidade do consumidor. Isso resulta em um aumento significativo das ações judiciais contra as companhias aéreas, muitas vezes independentemente da validade da reclamação. Paralelamente, existe um mercado que adquire futuros créditos de consumidores a preços mínimos.
Os chamados “captadores abutres” não estão interessados em resolver possíveis lides, mas sim em iniciar ações legais para obter indenizações, muitas vezes adquirindo os direitos do consumidor, mesmo que esses direitos sejam unipessoais, o que contribui para a comercialização das reivindicações por indenizações.
Além disso, esses captadores fazem promessas vazias, explorando a falta de conhecimento e vulnerabilidade dos consumidores. Alguns sites também oferecem orientações sobre como processar as companhias aéreas, prometendo indenizações substanciais, o que resulta em um grande aumento de processos judiciais.
A justificativa apresentada pelas chamadas lawtechs “abutres” é que, se o serviço aéreo fosse bem prestado, não haveria necessidade de ajuizar ações judiciais. No entanto, é importante ressaltar que não se busca obstruir o direito de acesso à justiça em momento algum.
Pelo contrário, o cerne da questão reside no excesso de ações judiciais sem fundamento, resultantes de práticas questionáveis dessas lawtechs, que se especializaram na captação antiética de clientes. Além disso, elas desrespeitam a legislação aplicável sobre marketing jurídico e até mesmo sobre o exercício da advocacia.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) estabelece regras éticas que devem ser seguidas pelos advogados em sua atuação profissional, proibindo práticas publicitárias e de captação de clientes que possam ser consideradas antiéticas ou prejudiciais à imagem da profissão jurídica. O objetivo principal é manter os padrões éticos e a integridade da advocacia.
Ademais, é relevante observar que o próprio Executivo Federal orienta a busca de meios idôneos para a resolução de conflitos, incluindo a comunicação direta com as companhias aéreas e, se necessário, a utilização da plataforma Consumidor.gov, como etapas prévias ao ajuizamento de ações judiciais.
O abuso de direito por parte das lawtechs “abutres” está fundamentado na exploração prejudicial dos consumidores, aproveitando-se da ausência de custos para apresentar demandas nos Juizados Especiais. Isso tem como resultado o sobrecarregamento evidente do sistema judiciário, com a distribuição em massa de milhares de ações idênticas, carentes de veracidade e fundamentação adequada. Essa prática é claramente voltada para a obtenção de ganhos financeiros ilícitos.
É relevante notar que o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, alinhando-se com as considerações do Supremo Tribunal Federal, emitiu a Nota Técnica 01/2022. Nessa nota, foram elencadas diversas condutas que indicam a prática de litigância abusiva, judicialização excessiva e advocacia predatória.
Comparativamente, em 2018, as companhias aéreas foram alvo de 64 mil processos, em meio a um universo de 100 milhões de passageiros no Brasil. Os dados do primeiro semestre de 2019 já mostravam 109 mil processo contra as aéreas no país, segundo a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear). Esse número tem subido exponencialmente.
Em consulta ao DataJud – responsável pelo armazenamento centralizado dos dados processuais relativos a todos os processos físicos ou eletrônicos, públicos ou sigilosos dos os tribunais indicados nos incisos II a VII do artigo 92 da Constituição Federal –, é possível constar o avanço no número de ações em 2023, que supera 2022.
Em conformidade com a recomendação 127/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o entendimento do ministro Luiz Fux, é aconselhado que os tribunais adotem medidas para evitar a judicialização excessiva, que pode resultar na restrição do direito de defesa e na limitação da liberdade de expressão.
Especificamente, o artigo 1º da recomendação estabelece: “recomendar aos tribunais a implementação de precauções com o objetivo de coibir a judicialização excessiva que possa levar ao cerceamento do direito de defesa e à restrição da liberdade de expressão.”
Atendendo a essa orientação, a Justiça Federal determinou a suspensão de operação de 37 sites que prestam serviço a consumidores do setor aéreo por exercício irregular da advocacia, entre outros fatores.
Entretanto, a “guerra” continua, dado a reiteração dos atos ilícitos por esse segmento absurdo que se alastra no mercado.
É importante ressaltar que o foco não está em impedir que as pessoas busquem seus direitos, que são garantidos constitucionalmente. O objetivo principal é evitar a exploração indevida das ações de indenização, em que o propósito subjacente não é a resolução dos problemas nos produtos ou serviços, mas sim a busca por compensações financeiras por danos que nem mesmo foram vivenciados.
Por todas as considerações feitas, em conjunto com as medidas mencionadas, é essencial que haja uma atuação jurisdicional eficaz e competente por parte das companhias aéreas, auxiliando o Poder Judiciário a identificar demandas que denotam a prática de advocacia predatória, em desconformidade com os preceitos legais e éticos.
Reconhece-se o desafio existente, mas, que não pode ser capaz de enfraquecer o imperativo combate das práticas abusivas replicadas em alta escala, sob a não verdadeira justificativa criada pelos sites, startups e lawtechs “abutres”.
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JÉSSICA PERCIANY COSTA SILVA – Gestora Jurídica do Núcleo Direito do Consumidor – Setor Aéreo do Abi-Ackel Advogados Associados, Especialista em Advocacia Cível com Master of Busines Administration – MBA em Advocacia de Alta Performance
fonte: https://www.jota.info/coberturas-especiais/aviacao-desafios-da-retomada/lawtechs-como-ferramentas-de-advocacia-predatoria-no-setor-aereo-21122023